domingo, 10 de junho de 2007

Liberdade e Democracia na Universidade

Samira Peduti Kahil


Texto preparado para Aula Aberta ministrada aos Alunos do Campus de Rio Claro, a convite da Comissão de Organização do Movimento Estudantil.
23/05/2007. Anfiteatro do IB – Unesp – Rio Claro.


Quando nós professores recebemos um convite para falarmos aos jovens, nosso entusiasmo se renova, isto quer dizer – o desafio de falar aos jovens aguça nossa imaginação, provoca uma agitação do espírito e leva-nos a procura séria e profunda das idéias, das coisas mais importantes, mais contemporâneas que no fundo são as que interessam ao público jovem e a mim mesma. Por isso me sinto jovem!
Nos diz Piaget (1896-1981), que uma característica marcante do pensamento do jovem, qualquer idade tenha ele, é sua capacidade de questionar o real, subverter o real, desenvolver o pensamento abstrato que leva a inteligência do homem para além da superfície das coisas, produzindo teorias sobre o real.
Juventude é aquele momento em que o homem torna-se capaz de dar explicações, de construir modelos, sistemas, conceber o mundo, transformar o real, atividade que exerce mesmo com grande entusiasmo. É assim, que o homem consegue fazer saltar à luz da compreensão a intimidade mais profunda dos fenômenos. É com a teoria que o homem consegue enriquecer, no final das contas, a estrutura do real.
Ou ainda como nos diz Einstein é a “teoria que decide o que podemos observar”.
E o tema proposto para eu falar sobre a Liberdade e Democracia na Universidade – é desses temas que nos permitem aprofundarmos, ampliarmos as discussões sobre o mundo, questionarmos o mundo e esta é uma atitude das mais importantes, isto se, como jovens acreditamos que o mundo possa ser diferente.
Porque não há como escaparmos. De alguma forma irá manifestar-se, no jovem, esse tipo de pensamento questionador do mundo. O jovem é aquele que pensa que o mundo pode ser diferente.
Se reprimirmos a discussão dos jovens sobre a reformulação do mundo ou eles caminham para um processo de constituição de projetos clandestinos de atuação ou simplesmente enchem-se de entorpecentes, real ou simbólico, em protesto contra a resistência à sua participação na reorganização do mundo.
E hoje, a velocidade com que o homem transforma o mundo, exige de nós vitalidade, um esforço revolucionário de nossa própria razão.
Isso porque, a despeito de a multiplicidade cada vez maior das ciências particulares permitir acumularem-se um corpo de fatos e informações espantosamente rico; a despeito de os nossos instrumentos técnicos para observação e experimentação serem imensamente aperfeiçoados - essa riqueza, contudo, não é necessariamente uma riqueza de pensamentos. Assim nos diz Cassirer, um historiador da filosofia alemã que viveu nos inícios do século XX (1874-1945) “continuamos perdidos em uma massa de dados desconexos e desintegrados que parecem carecer de toda unidade conceitual”. (Cassirer, 1994)
Mas, no mais das vezes, subsumidos que estamos à racionalidade técnica e instrumental, com ligeireza nos desfazemos da tarefa de pensar criticamente, isto é, nos recusamos colocarmo-nos diante do que existe a partir de um nível mais alto de abrangência e, por conseguinte, com visão mais totalizadora das coisas, o que permitiria enxergarmos diferentes caminhos e não um só.
O conceito de racionalidade que estamos aqui nos referindo é introduzido por Max Weber para determinar a forma instrumentalizada de agir com a finalidade de tornar mais eficaz a atividade econômica capitalista.
Progressivamente esse padrão de ação instrumental foi invadindo todas as esferas da sociedade e está intimamente ligado à institucionalização do progresso científico e técnico da modernidade.
Como Geógrafos podemos dizer que essa racionalidade técnica, científica, instrumental é também constituinte dos sistemas de objetos que se instalam no território com a finalidade de tornar plena a eficácia das ações – a eficácia do fazer econômico. Esses objetos técnicos são os instrumentos de trabalho que se agregam à natureza, são as firmas, as instituições e também os homens em ação introduzindo uma racionalização técnico-científica no próprio conteúdo do território.
A racionalidade que estamos testemunhando no mundo atual não é apenas social e econômica, ela reside também, no território. (Milton Santos, 1996)
São esses espaços continentes dessa racionalidade sistêmica que se constituem hoje, os espaços das ações hegemônicas que, pela primeira vez na história, orientam, planejam tecnicamente a divisão territorial do trabalho, criando uma hierarquia entre os lugares, redefinindo a capacidade de agir das pessoas, das firmas, das instituições.
De outro lado... também a Ciência, prisioneira da instrumentalidade e do utilitarismo, marcadamente informacional aparece como um complexo de variáveis que comandam esse modo de desenvolvimento do período atual (Santos & Silveira, 2001)
O problema que aqui se coloca é que vivendo num mundo assim tecnicizado, somos conduzidos a crer que também o conhecimento tem de ser produzido como técnica.
Então, há um desdobramento da finalidade do ensino, que é dado como se a técnica – e não a humanidade – fosse o centro do mundo. A dimensão central do ensino é ensinar a ser Homem. O ensino da técnica apenas como uma forma de fazer é um convite à ausência de crítica ao que existe ao nosso entorno. (Milton Santos, out/1998).
Mas o que nos é permitido discutir racionalmente? Regras técnicas, resultados científicos, procedimentos administrativos, enfim saberes operativos que possam ser objetivamente avaliados segundo critérios da maximização da eficácia instrumental?
A recusa de um debate mais geral, a recusa do pensamento filosófico, do pensamento crítico, produz uma conformidade na sociedade. Isso também se deve à distorção do processo de educação.
Da aquiescência sem crítica à ciência que tudo faz sem se perguntar se tais práticas são justas e desejáveis, uma vez que todas as decisões econômicas e políticas passam por soluções técnicas, tem resultado um processo em que a cultura, que queria significar reunião de um povo educado e humanus, abandona o ideal de reflexão, contemplação e autonomia do pensamento para se estabelecer sob os auspícios da mídia que proscreve o esforço intelectual em nome da “facilidade” e o consumo como única forma de felicidade. (Olgária Mattos, 2004).
No curso dessa “tragédia” a racionalidade científica acentuou ainda mais o seu caráter fragmentário, especializado e instrumental, a democracia como esforço conjunto de ações e deliberações – é substituída por lobbies e pelo monopólio das informações disponíveis na mídia – numa democracia de mercado
Intimamente relacionadas essa tecnociência e a mídia – tudo corrobora para que o indivíduo assim por elas e para elas “formado” não tenha pensamento próprio, o que o exime de responsabilidade (indiferença moral), o torna passivo e apático politicamente.
“Nunca uma época esteve tão disposta a suportar tudo e, ao mesmo tempo, achar tudo tão intolerável” (Agamben, 2002)
De um projeto de modernidade centrado no homem, no indivíduo, no cidadão em sua dignidade e liberdade coletivas, a sociedade contemporânea mergulhou na esquizofrenia de um individualismo exacerbado que cultua a eficácia e o sucesso, o pânico e a concórdia, o consumo e o espetáculo, o realismo delirante das imagens desreferenciadas e o presente embaralhado e breve. Isto talvez nos autorize afirmar que vivemos uma situação crítica, uma época pós-dever, sem obrigações ou sanções morais, isto é, uma sociedade “pós-moralista”. Dos espaços públicos onde a razão ética e teórica pôde se constituir em Políticas amplas, encontramo-nos num espaço destituído de razão, de sentido. (Wolff, 2000). Isto talvez nos autorize afirmar que nosso tempo é pós-humanista. Daí o desencantamento com a política!
Assim, perdemos o sentido do nosso estar no mundo. Nos encontramos desorientados porque desamparados racionalmente diante do nosso próprio desejo de agir moralmente.
Mais que nunca é preciso estender o raio de nossas responsabilidades e mais que nunca a reflexão constitui uma obrigação iniludível.
No curso desse desastre a universidade passou da condição de instituição social à condição de organização social.
Ora, uma organização é muito diferente de uma instituição, ou seja, o que está em jogo é uma outra prática social, uma prática regida exatamente pela instrumentalidade.
E o que está por trás dessa instrumentalidade? Atrás desta instrumentalidade está a própria racionalidade que separa a teoria da prática, o pensar do fazer, uma racionalidade que aliena o trabalho e, no fundo, há quem não perceba nessa racionalidade a subserviência e heteronomia a que esta sujeita a própria razão. Racionalidade assim significa operatividade ou funcionalidade. (Chauí: 1998)
Regida por contratos de gestão, avaliada por índices de produtividade, calculada para ser flexível, a universidade operacional, vem se estruturando através estratégias e programas de eficácia organizacional, uma universidade subordinada a imposições do mercado, ou subserviente às leis, às normas e decretos adrede estabelecidos.
Então, a universidade passa a ser definida e estruturada por normas e padrões alheios ao conhecimento e a formação intelectual. Seus docentes e seus estudantes estão submetidos a outras exigências que não o trabalho intelectual. Isto é visível no aumento insano de horas aula, diminuição do tempo para mestrados e doutorados, avaliação pela quantidade de publicações, colóquios e congressos, multiplicação de comissões e relatórios.
Na realidade o que temos na universidade é o rebaixamento da razão à mera racionalidade funcional, operacional, a serviço do processo de valorização do dinheiro.
Talvez, por isso também, encontramos na universidade, nichos estrategicamente delimitados onde se alistam aqueles especialistas sem espírito, que passam a investigar problemas escolhidos em função da possibilidade de serem financiados e não em termos da avaliação que deles faz o próprio cientista. Nichos onde os cientistas passaram a ser vendedores de projetos de pesquisa. Especialistas que produzem conhecimento sob medida para serem financiados pelas agências que encomendam pacotes de conhecimento.
Com todos os seus defeitos, a universidade é, no entanto, o único lugar onde podemos realizar coisas com alguma importância e autonomia. A universidade é uma instituição que por definição cresce negando-se, cresce questionando-se a si mesma.
Essa possibilidade de realização, de orientar e dinamizar o entorno acadêmico existe, ainda que os acontecimentos, os decretos e a política deste governo estadual possam desanimar, ainda haja professores ou estudantes que não queiram participar das atividades políticas cotidianas. Outro motivo da falta de dinamismo e de idéias vem exatamente porque as discussões são repetitivas e puramente técnicas. Seria interessante contabilizar quantas vezes as comissões se reúnem para discutir a melhor maneira de uso, ou a melhor máquina para determinado trabalho.
Os próprios trabalhos acadêmicos são, via de regra um trabalho técnico. Por exemplo, nas teses a reflexão é freqüentemente expulsa ou considerada desnecessária, quando não, ridicularizada.
Normalmente nesses trabalhos se acumulam quilos de documentos, mas que servem apenas para fazer vinte páginas recontando fatos. Há que encontrarmos idéias, mas a gente pouco lê. Da universidade ao parlamento, da imprensa às organizações políticas, a leitura deixou de ser referência, pois esse tempo necessário para leitura não se circunscreve na contratação do tempo do mercado, do consumo. E não temos tempo para ler..... exatamente porque estamos ocupados em coletar informações.
Cada vez mais cresce a tendência a tecnicização da ciência e a gente fala de uma coisa como se essa coisa não estivesse envolta pelo mundo. Esse... me parece um traço dominante da vida acadêmica cujo resultado é que já não se produzem mais grandes obras. É muito raro que apareça uma grande obra produzida a partir da atividade propriamente acadêmica.
Estará realmente o homem de ciência obrigado a suportar este pesadelo? Terá definitivamente passado o tempo em que sua liberdade íntima, seu pensamento independente, autônomo e suas pesquisas podiam iluminar e enriquecer a vida dos homens?
Se o cientista contemporâneo encontrar tempo e coragem para julgar a situação com responsabilidade por sua casa - a universidade, encarando-a como instituição social inseparável das idéias de formação e criação, e se preocupar realmente em dar significado à sua atividade, como valor com que o homem enriquece seu patrimônio existencial, então as perspectivas de uma solução para a situação em que nos encontramos, aparecerão profunda e radicalmente transformadas.
Este é o desafio que temos que enfrentar se estamos nos mobilizando para garantir o direito à liberdade e à sociabilidade, sociabilidade que somente a Universidade, como instituição pública, pode consolidar. A diferença é que as instituições privadas são empresas, organizações e, que por sua natureza, não criam sociabilidade. Acrescente-se que as mega-empresas monopolistas - que dominam a economia mundial, forçando os Estados nacionais a adotar suas políticas – aquelas políticas fundadas na idéia de que o desenvolvimento do país depende da privatização das empresas públicas como condição para o crescimento e competitividade no mercado máximo – essa mesma política privatística do capitalismo neoliberal que retiram autonomia política dos lugares, enfraquecendo assim as possibilidades de se constituir nos lugares uma sociabilidade forte, capaz de barrar, através dos direitos sociais, civis e políticos, a dissolução do tecido social. A indiferença e a descrença em instituições públicas resultam na perda da “dignidade da política”, o que abre espaço para as diversas formas de totalitarismos.
A democratização do país, que está ainda por ser inventada, não depende dos vícios ou virtudes dos nossos governantes, mas da qualidade de nossas instituições públicas.
Assim, a despeito da situação crítica do sistema educacional brasileiro e diante das condições atuais, quando o trabalho intelectual genuíno se encontra ameaçado de extinção, o imperativo da informação banalizada subordina o pensamento às lógicas do mercado e, o saber técnico e as especializações têm preponderância sobre o saber social e filosófico, é indispensável estarmos ainda mais preparados intelectualmente para romper a rigidez dos currículos e práticas de ensino e pesquisa, para resistir e subvertermos essa ordem fundada numa razão instrumental cujos fins são apenas aqueles que interessam à economia e à política de alguns, em detrimento da maior maioria.
Por isso apóio veementemente este movimento que os estudantes corajosamente iniciaram.
O movimento dos estudantes é um movimento em defesa da universidade pública e eu sou inteiramente à favor! E desta vez, há toda uma preocupação cultural... entendendo aqui cultura como a quintessencia (o mais alto grau) da cidadania democrática em que a sociedade na continuidade de gerações constituem sociedades espiritualmente resistentes na defesa, manutenção, criação de direitos e desmontagem de privilégios.
Por isso acredito no movimento... porque agora o que buscamos não são privilégios mas a garantia de uma educação pública, republicana e democrática – porque parece que descobrimos que a “imaturidade” política que grassa em nosso país, não se deve apenas à exploração econômica a que estamos sujeitos, mas à evidente exclusão cultural à que esta sujeita a sociedade brasileira, via a total perversão das instituições democráticas.
Assim todo nosso empenho como professor, pesquisador e estudantes, deve buscar uma reflexão que esteja à altura dos problemas que a humanidade levanta hoje, diante da situação paradoxal em que se nos encontramos no mundo: de um lado, um mundo de fabulações que se impõe aos espíritos para consagrar um discurso único, fundado no totalitarismo da informação, no culto à velocidade e alicerçado na produção de imagens a serviço do dinheiro, do mercado, dinamizado pelo desejo; de outro lado um mundo perverso onde se generalizam, em todos os continentes a pobreza, o desemprego, o desabrigo e a fome. (Milton Santos: 2000)
Estudar, pesquisar, pensar não é uma tarefa fácil.
É preciso reflexão, imaginação se quisermos com nosso trabalho, apresentarmos idéias com força política – se quisermos nos manter corajosamente jovens, jovens capazes de questionar e mudar o mundo.
Por isso meus caros... coragem! É preciso coragem para exercermos nossos direitos políticos, é preciso coragem para pensar, assim como é preciso ter coragem para lutar ou sofrer... porque ninguém pode pensar em nosso lugar – nem lutar ou sofrer em nosso lugar.

2 comentários:

Anônimo disse...

terá assembléia essa semana?

Anônimo disse...

Maravilhoso o texto da profª Samira, dispensa comentários.
Como não conseguirei escrever nada a altura, valho-me das palavras de Brecht:
"Os caídos que se levantem!
Os que estão perdidos que lutem!
Quem reconhece a situação como pode calar-se?
Os vencidos de agora serão os vencedores de amanhã.
E o "hoje" nascerá do "jamais".
É isso aí queridos, saudações da Lila.